A filha de Manguenza

Quando criança, ouvia o nome desse lugar. Meu pai contava que minha avó, Leonor Pinto Ramalho, veio de lá. Seus pais, Isidro Pinto Ramalho e Luzia Pinto Ramalho, eram filhos de Antônio Pinto Ramalho e de Constancia Ramalho, agricultores em Manguenza, território de Misericórdia e hoje encravado no município de Nova Olinda. Como em toda história de sertanejo tem uma seca pelo meio, foi fugindo de uma seca "braba" que meu bisavô Isidro partiu de Piancó para o Maranhão e por lá morreu de beri-beri, uma deficiência de vitamina B1 que enfraquece o corpo e ataca o coração. A filha Leonor ficou por estas bandas ao Deus dará. 
O padre José Enfrausino Maria Ramalho, vigário de Bananeiras, mandou buscar a filha solteira e menor de seu primo Isidro, entregando-a à custódia das beatas remanescentes da Casa de Caridade fundada pelo Padre Ibiapina em Santa Fé, nas portas de Arara, bem no final do território de Moreno (Solânea), mas tudo dentro da grande Bananeiras. O tenente (da Guarda Nacional) José Rodrigues da Costa Neto, senhor do Engenho Poço Escuro, tinha filhos pequenos e a esposa, prima da menina Leonor, estava enferma. O padre, que prestava assistência espiritual àqueles parentes, levou Leonor para residir na Casa Grande do engenho e ajudar no cuidado das crianças.
Quando o tenente Zé Rodrigues ficou viúvo, Leonor já era a verdadeira mãe dos filhos da prima falecida e apegara-se àquelas crianças como se fossem suas. Mas  tinha que voltar à Casa de Santa Fé e ao convívio das beatas - era a ordem do primo-padre. Leonor resistiu. Não abandonaria aquelas crianças. O sofrimento seria recíproco, mas o da prole na orfandade materna seria maior. Uma moça solteira não pode morar na casa de um viúvo, ponderou o vigário. Era como riscar um fósforo numa lata de querosene, acrescento eu. A solução foi a mais natural possível. O viúvo casou com a prima da esposa falecida, e desse casório engendrado pelos sentimentos imaculados do padre Enfrausino nasceu o ramo da família Leite Ramalho, do Brejo. Leonor passou a chamar-se Leonor Rodrigues Ramalho e, após dar sete filhos ao tenente Zé Rodrigues, ficou viúva em 1939.
Uma brava mulher, essa sertaneja. Lembro-me dela, com um búzio gigante aos lábios, bochechas cheias de ar, anunciando aos trabalhadores do engenho a hora de largar o serviço. A força do som provocado por aquele berrante marinho só era comparável à força daquela mãe-viúva na condução de duas famílias: a que constituíra e a que herdara da prima. Restam poucos para contar essa história. Ela serve, pelo menos, para alimentar a curiosidade dos alunos da escola que leva o seu nome, em Borborema.
Por falar em curiosidade, lembro que era no Engenho de Poço Escuro que o futuro desembargador Luiz Sílvio Ramalho costumava passar férias. Era primo da dona da casa, pois seu pai, Zeca Ramalho, era irmão de Isidro. Diziam o meu pai e meus tios que ele adorava os banhos de rio e brincava feliz com a molecada do engenho. Fecho o parêntese.
Ao falecer, em dezembro de 1968, "Mãe Lôzinha" como a chamavam os netos vinculados à zona rural e morando mais perto dela, ou "Mamãe-três", como eu e outros netos urbanos carinhosamente a chamávamos, já podia contemplar também muitos bisnetos. Seus braços acolhedores e seu teto aconchegante foram sempre o porto seguro para todos os que nasceram dessa filha de Manguenza, manda por Deus para as terras de Poço Escuro. Ela trouxe a luz e deu vida a todos nós. 

LEITE, Ramalho. A botija de Camucá e outros assuntos aleatórios/ Ramalho Leite - João Pessoa: A União, 2014, pág. 143.

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